“Nem tudo que é útil, é necessário”. Foi o que um sacerdote me disse certa vez. E embora pareça um tanto óbvia a sentença, possui um potencial reflexivo maior do que se possa imaginar. Ainda mais para nossos dias que giram em torno ora do pragmatismo, ora da religiosidade de serventia.
Num primeiro momento, quando se diz que algo não é útil, logo, pode-se cair naquela ideia de que as coisas — todas e de qualquer ordem — não precisam ter utilidade, como num niilismo consentido e até mesmo desejado. Ou, então, nos restringimos àquela inutilidade benquista muito alardeada como senso estético (“A arte pela arte”). Por fim, já quase como senso comum, há a mentira de que a filosofia não tem utilidade alguma — e aqui faço ligeira digressão para dizer que isso não faz sentido, pois notavelmente é uma perspectiva que nasce no iluminismo, que, como forma de se contrapor à Igreja Católica na busca pela Verdade, transforma o método filosófico (o questionamento), criado por Sócrates, no fim último da filosofia.
Bem, se as coisas têm, sim, utilidade (e se torna, por isso, inviável adotar o niilismo como algo que dê plenitude à existência humana), se a arte é útil e assim também o é a filosofia, por que somente Deus não é útil? Por que a Ele é dada a condição de necessário?
Deus não pode ser colocado em nossas vidas como um tipo de fármaco. Deus não é remédio para nada. Deus é necessário. Se O instituo como elemento fundamental para que as coisas cumpram sua função, assim como a vassoura perde a utilidade pelo tempo de uso, Deus, então, pode muito bem ser descartado. Ainda mais, se, num determinado momento de minha vida, num ímpeto de automagnitude, pelas minhas próprias capacidades, ascendo o que é apenas útil a algo necessário.
Mas, como pode a salvação ter conotação de pragmatismo? Sim, porque Deus é necessário em função de que sem Ele não alcançamos a salvação de nossas almas. E aí sempre vêm as perguntas: “O que é essa tal salvação?”, “Por que ela é necessária?” Se se faz um mínimo exame de consciência, inevitavelmente, é possível ver que há em nós uma desordem — tanto de sentidos quanto do uso da nossa precária razão. Voltar-se para Deus, submeter-se a Deus a partir da revelação divina — o Cristo –, é a exclusiva chance que temos de sair do limbo das misérias que assolam nossas intenções e ações.
Elevar a nossa alma para Deus é fazer uso dessa nostalgia da Graça — que existe em todos nós e é algo passado espiritualmente de geração a geração. A busca por ter de volta a Graça deve existir até nosso último suspiro. Por isso, a vida cristã é um tormento ininterrupto: a consciência permanente de que somos pecadores, o crucial arrependimento dos nossos pecados, a santidade (que se dá pelas obras) como imprescindível horizonte. E tudo isso se sintetiza no caráter necessário de Deus em nossas vidas.
Nós temos sede de Deus. Precisamos de Deus. A imagem e semelhança que Ele nos concedeu são, exatamente, os elementos espirituais que nos constituem. Nossos movimentos são, primordialmente, de ordem espiritual. Somos animais espiritualizados, cuja desordem, estabelecida pelo pecado original, nos desvia da Graça, nos condiciona a uma existência na qual a espiritualidade é canalizada tanto para o que nos é útil quanto para o que é explicitamente perecível.
Diferente de como os animais se movimentam. Eles possuem um padrão, um código que os aprisiona a uma especificidade de ações. A nós, Deus concedeu a liberdade, que se resume na consciência da qual fazemos uso, por nossa inteligência e vontade. Mesmo depois de perdida a Graça, Deus não nos tirou tais atributos. Sim, Deus é bom porque é justo.
O alcance da Graça, como dito antes, ocorre, na prática, pelas obras. Entre estas, há as ações morais que adotamos em nossas vidas. Mas aí reside o perigo de, outra vez, tornarmos aquilo que é instrumento para consciência da necessidade que temos de Deus em mera utilidade incensada como virtude teológica. A desordem nos tira o discernimento até mesmo das coisas que têm valor, nos levando a um caminho que parece nos conduzir a Deus, mas não o faz. Quando questões morais são um fim em si mesmo podem até ser úteis, mas elas perdem o caráter salvífico. E nos tornamos meros moralistas. E ser moralista não é o suficiente para a salvação da alma. Deve-se, decerto, colocar as obras em prática, mas sempre com a nossa inteligência e vontade voltadas para Deus.
O exemplo anterior de obra também serve para a caridade enquanto assistência material aos desafortunados. Dar o pão para quem tem fome, não há dúvidas, faz muita diferença. Mas se o fazemos para e por quem recebe o alimento, se não o fazemos para Deus, somos meros fantoches de ONG’s. Nunca se viu Santa Dulce dos Pobres ou Santa Tereza de Calcutá dando um donativo sem, junto a este, dar uma palavra de salvação, um conselho cristão de convite à missa, à confissão, ao rosário.
Não há possibilidade de existir vida digna e plena sem louvar a Deus, sem contemplá-Lo. E foi Cristo quem nos mostrou o Caminho. Quando Ele disse que “bem-aventurados são os pobres de espírito, porque estes herdarão o reino dos Céus”, fez nítida referência àquelas pessoas que simplesmente animam seus espíritos à base de perdão, arrependimento e caridade, porque sentem sede de Deus. E sabem, sem expressá-lo em linguagem rebuscada, que Deus é necessário.